Este artigo aborda a complexidade na arte sob as perspectivas da crítica de processos em Cecilia Salles (2006, 2010), da mestiçagem em Laplantine & Nouss (2002) e Amálio Pinheiro (2007), junto ao conceito de campo expandido de Rosalind Krauss (1984). Focalizaremos a complexidade da criação artística como sistemas abertos, processos que utilizam movimentos tradutórios intersemióticos e, deste modo, interdisciplinares, interlinguísticos, em redes da criação e de alteridade.
Uma questão reincidente na arte contemporânea é aquela conceituada como campo expandido[1], um dos lugares onde se evidencia a complexidade do fazer artístico. A problematização deste campo é aqui feita consonante à noção de unidade complexa, um todo que não é redutível à soma de suas partes constitutivas (MORIN, 2005) organizado múltipla e não linearmente, sob a ótica de redes processuais da criação (SALLES, 2006).
Experiências recentes tensionam as fronteiras artísticas, tanto em suas múltiplas linguagens quanto em seus processos de criação em redes. Seria o espaço pictórico um campo cognitivo ainda fértil? Pergunta pertinente, já que a ideia de esgotamento da pintura foi precedida, durante toda a primeira metade do século XX de várias “últimas pinturas”. Seguiram-se contínuos anúncios de óbito. E, a partir dos anos 1980, afirmações de renascimento. Pois foi nesta linguagem, a pintura, que se fizeram sentir mais fortemente os fluxos e refluxos da “morte da arte”, prognosticada por Hegel:
Tal persistência pode nos indicar que, ao exigir uma específica postura espacial e temporal, tanto para a própria fatura como para a sua fruição, a pintura se qualifica como um campo de experiências capaz de apresentar uma alternativa aos problemas oriundos da saturação sensorial, tal como denunciada por Paul Virilio[2]. Segundo este filósofo e urbanista francês, estudioso das implicações dos meios de comunicação de massa, a superabundância informativa e superexcitação sensorial conduz o sujeito contemporâneo a uma desorientação. E tal desorientação, por sua vez, pode levar a refúgios em fundamentalismos, a fim de evitar um possível desconforto que se sente perante o sublime. Parece ser o que sugere o curador, crítico, professor de história da arte e pesquisador Paulo Sérgio Duarte:
Uma questão reincidente na arte contemporânea é aquela conceituada como campo expandido[1], um dos lugares onde se evidencia a complexidade do fazer artístico. A problematização deste campo é aqui feita consonante à noção de unidade complexa, um todo que não é redutível à soma de suas partes constitutivas (MORIN, 2005) organizado múltipla e não linearmente, sob a ótica de redes processuais da criação (SALLES, 2006).
Experiências recentes tensionam as fronteiras artísticas, tanto em suas múltiplas linguagens quanto em seus processos de criação em redes. Seria o espaço pictórico um campo cognitivo ainda fértil? Pergunta pertinente, já que a ideia de esgotamento da pintura foi precedida, durante toda a primeira metade do século XX de várias “últimas pinturas”. Seguiram-se contínuos anúncios de óbito. E, a partir dos anos 1980, afirmações de renascimento. Pois foi nesta linguagem, a pintura, que se fizeram sentir mais fortemente os fluxos e refluxos da “morte da arte”, prognosticada por Hegel:
Quando damos à arte esta posição elevada, é necessário, entretanto, lembrar que a arte não seria, nem segundo o conteúdo, nem segundo a forma, o modo mais elevado e absoluto de trazer ao espírito a consciência de seus verdadeiros interesses. Pois, exatamente devido a sua forma, a arte também está limitada a um conteúdo determinado. Apenas um certo círculo e nível da verdade é capaz de ser exposto no elemento da obra de arte. Contudo, para ser autêntico conteúdo da arte, há de pertencer à determinação própria desta verdade transitar em direção ao sensível e poder nele ser adequada a si, como é o caso, por exemplo, dos deuses gregos. Em contrapartida, há uma versão mais profunda da verdade, na qual ela não é mais tão aparentada e simpática ao sensível para poder ser recebida e expressa adequadamente por meio deste material. A concepção cristã de verdade é desse tipo, e, sobretudo, o espírito do mundo atual, ou melhor, o espírito de nossa religião e de nossa formação racional se mostra como tendo ultrapassado o estágio no qual a arte constitui o modo mais elevado de o absoluto se tornar consciente. A maneira peculiar da produção artística e de suas obras já não satisfaz nossa mais elevada necessidade. Nós nos elevamos sobre o nível de poder venerar e adorar obras de arte divinamente. (HEGEL apud trad. GONÇALVES, 2004, p. 49).As reflexões hegelianas sobre a morte da arte reverberaram em teses similares de outros pensadores: Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Walter Benjamin, Theodor Adorno e, recentemente, naquelas enunciadas por Arthur Danto e também por Hans Belting. Quanto à pintura, uma piada do meio artístico diz que faltou “combinar o jogo” com o cadáver, pois este nunca se aquietou. Ao contrário, a produção de pinturas se acelerou nas últimas três décadas, sem quaisquer evidências de despotencialização.
Tal persistência pode nos indicar que, ao exigir uma específica postura espacial e temporal, tanto para a própria fatura como para a sua fruição, a pintura se qualifica como um campo de experiências capaz de apresentar uma alternativa aos problemas oriundos da saturação sensorial, tal como denunciada por Paul Virilio[2]. Segundo este filósofo e urbanista francês, estudioso das implicações dos meios de comunicação de massa, a superabundância informativa e superexcitação sensorial conduz o sujeito contemporâneo a uma desorientação. E tal desorientação, por sua vez, pode levar a refúgios em fundamentalismos, a fim de evitar um possível desconforto que se sente perante o sublime. Parece ser o que sugere o curador, crítico, professor de história da arte e pesquisador Paulo Sérgio Duarte:
Muitas vezes o papel da obra de arte é apontar algo que falta em mim mesmo. A obra não vai me preencher, mas apontar que não estou completo, pois sequer eu imaginava que essa experiência seria possível. Ou seja, não sou completo como pensava que era. Estou cheio de vazios e a obra está lá para mostrá-los. A graça da arte é apontar para nossas incompletudes e isso independe do meio: pode ser uma estátua de mármore grega ou um jogo de videogame. Se tiver força poética, a obra vai permitir essa experiência. (DUARTE, 2009).O caráter falacioso da conhecida alegação de finitude da pintura é evidenciado na numerosa produção recente nesta linguagem no sistema de arte. Pensamos ser oportuna uma renovada reflexão a respeito deste campo linguístico, tradicionalmente demarcado por um repertório já estabelecido. Pois novas experimentações problematizam recursos gramaticais desta linguagem que, na tradição, é majoritariamente planar, enfatizando configurações que saem do espaço pictórico tradicional, rumo àquele campo expandido definido por Rosalind Krauss. E como, já em 1961, refletia Hélio Oiticica:
Para mim, a dialética que envolve o problema da pintura avançou, juntamente com as experiências (as obras), no sentido da transformada pintura-quadro em outra coisa (para mim o não-objeto), que já não é mais possível aceitar o desenvolvimento “dentro do quadro”, o quadro já se saturou. Longe de ser a “morte da pintura”, é a sua salvação, pois a morte mesmo seria a continuidade do quadro enquanto tal, e como “suporte” da “pintura”. Como está tudo tão claro agora: que a pintura teria de sair para o espaço, ser completa, não em superfície, em aparência, mas na sua integridade profunda. (OITICICA: 1986, p. 26-27).Relacionado à esta expansão da linguagem pictórica, o conceito de mestiçagem nos instrumenta para a compreensão do seu âmbito cultural, onde o pesquisador se contamina pelo objeto (obras) e ambiente de criação (atelier e sistema de arte) e vice-versa, num trânsito aberto às proposições da alteridade (artista/matéria e artista/público/crítica) inscrita num vaivém onde é perceptível a integridade do artista e da matéria na obra que emerge, sem fusões e sínteses redutoras:
Trata-se, contrariamente à mistura e ao misto, de um pensamento da tensão, ou seja, decididamente temporal, evoluindo através das línguas, dos gêneros, das culturas, dos continentes, das épocas, das histórias e das vivências. Não é um pensamento da origem, da matriz, nem da filiação pura, mas da multiplicidade nascida do encontro. É um pensamento dirigido para um horizonte imprevisível que permite restituir toda a dignidade ao futuro. (LAPLANTINE & NOUSS: 2002, p. 84, grifo nosso).Esta multiplicidade nascida do encontro como postura relacional é assumida aqui como perspectiva válida para os desafios onde a arte, fazer humanista por excelência, ocupa papel estratégico.
(...) a mestiçagem se constitui como uma trama relacional, conectiva, cujos componentes não remontam saudosa e solitariamente a instâncias autorais perdidas, mas sim festejam o gozo sintático dessa tensão relacional que se mantém como ligação móvel em suspensão. (PINHEIRO: 2007, p.10, grifos nossos).A trama relacional, mantida como ligação móvel em suspensão, referente ao trabalho em sintaxes contínuas com o material em campo expandido e aberto à retomadas criativas, é problematizada também na abordagem sobre o processo criativo na ótica de redes da criação (SALLES, 2006) compreendendo a criação como processos em rede:
(...) é possível afirmar que a criação pode ser discutida sob o ponto de vista teórico, como processos em rede: um percurso contínuo de interconexões instáveis, gerando nós de interação, cuja variabilidade obedece a alguns princípios direcionadores. Essas interconexões envolvem a relação do artista com seu espaço e seu tempo, questões relativas à memória, à percepção, à escolha de recursos criativos, assim como aos diferentes modos como se organizam as tramas do pensamento em criação. (SALLES: 2010, p. 17, grifos nossos).Quanto ao campo expandido, tais nós de interação podem ser enfocados, sob a luz da crítica de processos, a partir das seguintes perspectivas (Salles, 2010): projeto poético (tendências observadas como atratores conectadas a princípios éticos e estéticos do criador), tempo da criação (pluralidade e imprecisão quanto a início e fim: um contínuo; ritmos de trabalho, maturação, hesitação, dúvidas, rupturas, continuidades, bloqueios), criação como transformação (processo em rede, a partir das singularidades operadas), relação artista/matéria (intercâmbio de propriedades e potencialidades), espaço da criação (artista imerso na rede cultural; espaço de trabalho com filtros mediadores de memória e imaginação; suportes para armazenamento de informações, como cadernos, máquinas fotográficas, gravadores etc), experimentação (levantamento de hipóteses, inferências indutivas e dedutivas, testes, seleções e opções), movimento tradutório (registros intersemióticos em outras linguagens daquela em que será construída a criação artística), redes culturais (o sujeito histórica e culturalmente sobredeterminado) ato comunicativo (carrega as marcas singulares do projeto poético que a direciona, que faz parte de complexas redes culturais; envolve também uma grande diversidade de diálogos de naturezas trans, inter e intrapessoais: do artista com a obra em processo e com futuros fruidores).
O processo de criação acontece no campo relacional ou nas interações: toda ação está relacionada a outras ações de igual relevância. É um percurso não linear e sem hierarquias. A interatividade, como motor do desenvolvimento do pensamento, é observada em níveis diversos: relação entre indivíduos, diálogo com a história da arte e da ciência e nas redes culturais. As interações são responsáveis pela proliferação de novas possibilidades: ideias se expandem, percepções são exploradas, acasos e erros geram novas possibilidades de obras. (SALLES: 2010, p. 156).O aspecto relacional, indicado na crítica de processos, expandindo ideias e percepções, também se verifica na mutualidade entre artista e matéria, que se modificam reciprocamente, como na citação acima de Paulo Sergio Duarte. A qualidade deste trânsito relacional em processos de criação, interrelacionada à alteridade da mestiçagem, envolve também a complexidade do campo expandido, em sintaxes múltiplas e interconexões que não se reduzem à soma das partes.
Notas:
[1] Este termo se refere ao texto de Rosalind Krauss cujo título original é Sculpture in the Expanded Field, e que teve sua primeira tradução publicada no número 1 da Revista Gávea, em 1984, com o título “A escultura no campo ampliado”. Optamos por usar aqui o termo expandido por considerá-lo mais próximo ao original e por evidenciar melhor a poética em questão.
[2] Referindo-se aos meios de comunicação contemporâneos: “O aspecto negativo destas autoestradas da informação é precisamente essa perda da orientação no que se refere à alteridade.” (VIRILIO, 1995).
[1] Este termo se refere ao texto de Rosalind Krauss cujo título original é Sculpture in the Expanded Field, e que teve sua primeira tradução publicada no número 1 da Revista Gávea, em 1984, com o título “A escultura no campo ampliado”. Optamos por usar aqui o termo expandido por considerá-lo mais próximo ao original e por evidenciar melhor a poética em questão.
[2] Referindo-se aos meios de comunicação contemporâneos: “O aspecto negativo destas autoestradas da informação é precisamente essa perda da orientação no que se refere à alteridade.” (VIRILIO, 1995).
Referências bibliográficas
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