Henri Matisse, "A exatidão não é a verdade", 1947*
Entre os desenhos que escolhi com o maior cuidado para esta exposição, há quatro - retratos, talvez - feitos a partir de meu rosto visto num espelho. Gostaria de chamar para eles, particularmente, a atenção dos visitantes.
Esses desenhos parecem-me resumir observações que venho fazendo há anos sobre as características de um desenho, e que não dependem da cópia exata das formas naturais, nem da paciente acumulação de detalhes exatos, mas do profundo sentimento do artista ante os objetos escolhidos, sobre os quais sua atenção se focaliza e cujo espírito ele penetrou.
Minhas convicções sobre essas questões cristalizaram-se depois de ter verificado o fato de que, por exemplo, nas folhas de uma árvore - de uma figueira, particularmente - a grande diferença de forma existente entre elas não impede que sejam unidas por uma qualidade comum. As folhas da figueira, por fantásticas que sejam as formas que assumam, são sempre, inequivocamente, folhas de figueira. Fiz a mesma observação sobre outras coisas que cresce: frutas, legumes etc.
Há, assim, uma verdade inerente que deve ser isolada da aparência externa do objeto representado. Esta verdade é a única que importa.
Os quatro desenhos em questão têm o mesmo motivo, mas a caligrafia de cada um deles mostra uma aparente liberdade na linha, no contorno e no volume expressos.
Na verdade, nenhum desses desenhos pode ser sobreposto ao outro, pois todos têm contornos totalmente distintos.
Em todos eles a parte superior do rosto é a mesma, mas a inferior é completamente diversa. No número 158, ela é quadrada e maciça; no número 159, é alongada em comparação com a parte superior; no número 160, termina numa ponta; e no número 161 não guarda nenhuma semelhança com as demais. [Ver ilustração]
Não obstante, os diferentes elementos que compõe estes quatro desenhos dão a mesma medida da composição orgânica do motivo. Esses elementos, apesar de nem sempre estarem indicados da mesma maneira, ainda assim se encontram presentes em cada desenho com o mesmo sentimento - a maneira pela qual o nariz está colocado no rosto, a orelha presa no crânio, o maxilar inferior pendurado, a maneira como os óculos estão colocados no nariz e nas orelhas, a tensão do olhar e sua densidade uniforme em todos os desenhos -, muito embora os tons da expressão variem em cada um deles.
É bastante claro que a soma total desses elementos descreve o mesmo homem no tocante ao seu caráter e personalidade, à maneira como olha as coisas e à sua reação à vida, assim como no que concerne à reserva com que a enfrenta e que o impede de abandonar-se a ela descontroladamente. É realmente o mesmo homem, que permanece sempre um espectador atento da vida e de sim mesmo.
Fica evidente, portanto, que a inexatidão anatômica, orgânica desses desenhos não prejudicou a expressão do caráter íntimo e da verdade inerente à personalidade, pelo contrário, ajudou a esclarecê-la.
Esses desenhos são retratos ou não?
Que é um retrato?
Não é uma interpretação da sensibilidade humana da pessoa representada?
A única frase de Rembrandt que conhecemos é esta: "Nunca pintei senão retratos".
O retrato no Louvre pintado por Rafael, mostrando Joan de Aragon numa roupa de veludo vermelho, é realmente o que se entende por retrato?
* * *
Esses retratos não são frutos do acaso, a tal ponto que em cada um deles se pode ver como, ao ser expressa a verdade do personagem, a mesma luz os ilumina, e a qualidade plástica de suas diferentes partes - rosto, fundo, qualidade transparente dos óculos, bem como a sensação do peso material - tudo isso é impossível de colocar em palavras, mas fácil de fazer dividindo-se o papel em espaços com uma simples linha de espessura quase igual - todas essas coisas continuam as mesmas.
Cada um desses desenhos, tal como os vejo, tem a sua invenção individual própria que vem da penetração, pelo artista, do seu motivo, e que cega ao ponto de identificar o artista com o motivo, de modo que a verdade essencial desse motivo constitui o desenho. Ela não é modificada pelas condições diferentes sob as quais o desenho é executado; pelo contrário, a expressão dessa verdade pela elasticidade de sua linha e por sua liberdade se presta às exigências da composição; seu jogo de sombras e luzes, e até mesmo de vida, se faz ao sabor do estado de espírito do artista, de quem é a expressão.
L'exactitude n'est pas la vérité.
-------
*De Henri Matisse, Retrospective Exhibition of Paintings, Drawings and Sculpture Organized in Collaboration with the Artista, catálogo da exposição realizada pelo Museu de Arte da Filadélfia, 3 de abril a 9 de maio de 1948, pp. 33-44. Este ensaio foi escrito em 1947, ocasião em que Matisse selecionou para a exposição de Filadélfia os quatro desenhos de seu rosto, feitos em 1939. A tradução inglesa é de Esther Rowland Clifford. [A tradução brasileira foi feita, a partir do texto inglês, por Waltensir Dutra. (N. do Ed. bras.)]
Publicado em:
CHIPP, Herschel B.. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1988, pp. 133 a 136